Discrepância

- Ei, venha cá... Não, não vire as costas; olhe para mim, não te custa nada ficar mais um pouco. Eu bem sei que assim que tu sair por aquela porta, não irá fazer nada. Ei, só mais alguns minutos, segundos, o que tu preferir. Deixe-me partilhar contigo a minha falta de quietação quando chove. Tu sabia dessa parte em mim? Eu adoro a chuva, o som que se ergue quando ela toca o chão, o cheiro de terra que sobe até meu nariz, mas é que às vezes ela me deixa fadigada; eu ando de um lado para o outro, mas não consigo me encaixar em canto algum da minha própria casa. É um frio, esse frio que fica sob a cerâmica e vai se apossando dos teus pés até chegar à tua espinha, mas isso nem vem ao caso. Ei, não, desculpa, eu não queria te aborrecer, é que tu quase nunca vem me visitar, fica, eu vou te fazer um café. Eu bem sei que tu gosta de café forte, pois irei fazer então, a teu gosto. Tu bem sabe que eu gosto de te agradar, gosto de ver este sorriso de canto que tu tem, esse mesmo, isso, veja só como o teu sorriso é bonito, ah não, me desculpe novamente, é que sou tão estabanada, não tive a intenção de derrubar o pó, olha só, tu rindo da minha falta de jeito. Eu já te disse que a única coisa que sei fazer direito na cozinha é café? Não? Pois eu podia jurar que sim, até porque já conversamos tanto sobre café. Tu se lembra daquele dia que tu me ligou? Era tantas da madrugada e tu não conseguia dormir e então, num súbito e sorrindo, disse que iria fazer café e ler um tico? Ahh, sinto por ti não se lembrar, tu nunca teve boa memória mesmo, ou talvez eu quem seja apegada demais a pequenos detalhes assim. Sabe? Foi desde esse dia que eu passei a beber café com mais freqüência, não sei, nunca tivemos muito em comum, até quando conversávamos havia divergências, então, pelo menos o café. Café... Numa forma singular nos une, não, não era isso que eu queria dizer, talvez exista um outro motivo que nos fez permitir nos sentir, talvez o café seja apenas uma velha desculpa para justificar essa nossa discrepância , não, espera, eu sei que eu falo difícil, não, te assente, desculpa, eu não queria segurar forte o teu braço, tudo bem, tudo bem, não se vá, não agora, eu prometo ensaiar mais vezes fronte ao espelho jeitos diferentes de conversar; mas tu te lembra que o motivo central de tu vir e se interessar por mim, fora por causa desse meu jeito estranho de me comunicar?  E tu dizia adorar esse meu jeito, contigo te levantando assim, penso até que tu mentiu a respeito de tudo; não, não quis usar de grosseria, não, te assente, o café já esta por sair. Tu podia ficar até duas xícaras. Por que tu não me conta como anda a tua vida? O que tem feito? Eu adoraria saber se aquelas tuas crises de asma houvera passado, se tu ainda escuta aqueles mesmos discos; vejo que tu emagreceu. Tu ainda tem aquela fragilidade de pouca coisa pequena te fazer chorar? E aquele teu sonho de ser modelo?  Tem pesquisado sobre isso? Claro que ponho mais café pra ti, desculpe a tremedeira, eu ainda tenho pressão baixa e aquelas velhas palpitações sob o peito, é estranho porque, mesmo depois de tanto tempo, tu ainda me deixa cambaleando e sem muito jeito.
Eu já te disse alguma vez que acho bonito teus olhos? Tão puxadinhos, veja só... Se aqui tivesse algum espelho, te faria te reparar... Eles são genuínos, adoro eles, eu não me recordo muito de fita-los com freqüência, mas, não sei, sempre que eu estava meio perdida eu procurava meio que a minha direção neles. Desculpa de novo, eu não queria te deixar sem graça, mas que de tudo que te forma, teus olhos são os que mais me cativam, ahhh como são belos, veja só este sorriso tímido em seus olhos, sinto falta deles.
Tome mais outra xícara, mas não vá agora. Tu precisa me dizer ainda como anda a tua irmã e se ainda tu tem aqueles sonhos descoordenados, velhos  e costumeiros sonhos, não, por favor, eu sou tão só e esta chovendo, tu pode pegar uma gripe, espere a chuva estiar; eu vou pegar um agasalho pra ti, vejo que os pêlos to teu braço de ouriçaram, venha aqui comigo, vou te arranjar aquela velha blusa de lã com cheiro de madeira nova que tu amava vestir, tu dizia se sentir abrigada nela, pois venha, eu vou até fazer um chocolate quente pra ti, eu comprei o Box do skins, tu já assistiu? Não? Tu vai gostar! E a propósito, desculpa a minha cara amassada, não dormi direito, fiquei lendo a madrugada inteira, ei, me desculpa também por te pedir desculpa a todo instante, e que há um peso enorme aqui dentro por nunca ter conseguido ser o suficiente.
Vejo só, sim, aquele ali é aquele cordão que tu me d`eu dizendo me proteger. Pus na cabeceira da cama, minhas insônias são freqüentes, vez e outra ele me ajuda a dormir, sim, eu ainda tenho aquele velho costume de ter fé, sabe-se lá em que.

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