Um Pequeno Bobo da Corte

...Em geral era assim que acontecia: quando ele via alguém jogando cartas, pedia que lhe dessem o curinga. E não importava se ele não conhecesse as pessoas que estivessem jogando cartas num café, ou sobre uma mesinha de madeira improvisada. Ele dizia, então, que era um apaixonado colecionador de curingas e pedia-lhes o curinga, caso elas não precisassem dele no jogo. A maioria delas dava o curinga sem maiores cerimônias; outras ficavam simplesmente olhando para o meu pai como se quisessem dizer que ele era o pedinte mais curioso que tinham visto em suas vidas. Outras, ainda, recusavam com educação o seu pedido e ainda havia aquelas que ficavam por demais irritadas com ele. Mais de uma vez eu já tinha me sentido uma criança pobre que é forçada a uma espécie de mendicância contra a sua vontade. É claro que eu também já tinha me perguntado o que teria motivado meu pai a ter um hobby tão original. E a explicação mais plausível era que isso talvez fosse para ele mais ou menos como colecionar cartões-postais de todas as cidades do mundo. Sim, porque também há baralhos de todos os países do mundo. Outra coisa óbvia era o fato de ele colecionar só curingas e nenhuma das outras cartas. Ele jamais poderia ter colecionado o nove de espadas ou o rei de paus, pois não se pode apenas ir entrando num clube de bridge para pedir o rei de paus ou o nove de espadas. A vantagem era que, em geral, existem dois curingas num baralho. Chegamos a encontrar baralhos com até três ou quatro, mas normalmente são apenas dois. Além disso, não há muitos jogos em que o curinga é necessário; e nos raros casos em que isso acontece, em geral as pessoas se contentam com um curinga. - Mas o interesse de meu pai pelos curingas tinha uma outra razão mais profunda do que essas reflexões de natureza prática: é que no fundo meu pai se considerava, ele mesmo, um curinga. Só raríssimas vezes ele chegou a verbalizar isso assim, de maneira textual; mas eu sabia fazia muito tempo que ele se considerava uma espécie de curinga dentro de um baralho. Um curinga é um pequeno bobo da corte; uma figura diferente de todas as outras. Não é nem de paus, nem de ouros, nem de copas e nem de espadas. Não é oito, nem nove, nem rei e nem valete. É um caso à parte; uma carta sem relação com as outras. Ele está no mesmo monte das outras cartas, mas aquele não é seu lugar. Por isso pode ser separado do monte sem que ninguém sinta falta dele. Acho que meu pai se sentia como um curinga...
(O Dia do Curinga)

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